A lei 12.651/2012 foi publicada a 10 anos. Com várias dúvidas jurídicas levantadas, o STF deu sua palavra final em acórdão proferido em 2019. Não existem mais grandes dúvidas a serem sanadas. Os mecanismos principais estão devidamente consolidados. Em razão da demora, os prazos necessitaram de alteração, e nas propostas que os alteram, alguns outros elementos foram inseridos. Detalhes que podem produzir pequenos efeitos. E essas pequenas alterações é que tem dominado as discussões. Contudo, parece que ninguém está preocupado com o efetivo funcionamento da norma. Parece que a aplicação prática da lei, e seus verdadeiros efeitos ambientais são meros detalhes a serem desconsiderados. Enquanto as eventuais pequenas alterações dominam o palco das discussões teóricas, a aplicação do Código vem sendo assassinada pela burocracia.
O Serviço Florestal Brasileiro lava as mãos na operacionalidade, não se abre a discussões e lança a responsabilidade do funcionamento do sistema aos estados. Muitos criaram sistemas próprios, o que ao invés de contribuir na operacionalidade, acaba por tornar o sistema nacional inviável.
Vários estados sequer criaram os PRAs, e outros, embora os tendo criado, não os operacionalizaram. Os que já os criaram e colocaram em funcionamento, na sua totalidade estabeleceram processos burocráticos, lentos e onerosos. Pasme-se: para poder cumprir uma obrigação ambiental e promover o cuidado ambiental, o proprietário ao invés de ter apoio dos órgãos de meio ambiente, encontra uma série de travas.
Os estados tomaram para si a análise de todos os detalhes relacionados ao CAR, fazendo que cada análise seja um verdadeiro martírio para os proprietários, os funcionários responsáveis, e sobretudo para o meio ambiente, que não é cuidado nem recuperado, enquanto se utilizam todos os esforços, meramente para o cuidado documental.
Os números oficiais disponíveis no site do CAR são apavorantes. Dos quase 7 milhões de propriedades cadastradas, até março deste ano, menos de 47 mil haviam sido devidamente analisados, em 10 anos de validade da norma. A continuar nesse ritmo, somente em 1.500 anos teremos conseguido analisar a totalidade das propriedades.
O estado da Bahia, por exemplo, tem zero cadastros finalizados. Minas Gerais tem somente 3. E na maioria dos estados, independentemente da linha ideológica de seus governantes, a situação é muito parecida.
Milhares de proprietários que tem multas ou embargos, relacionados a infrações cometidas antes de 2.008 continuam a serem executados, e os órgãos ambientais dispendendo esforços com processos que já deveriam estar suspensos ou extintos, se a propriedade estivesse regularizada. Por outro lado, as recuperações de APPs ainda não começaram, e as regularizações fundiárias de UCs, via doação para compensação de RL foram ridiculamente pequenas até o momento, também vítimas da burocracia.
O Caput do art. 66 estabelece de modo claro a possibilidade de regularização de RL independentemente da adesão ao PRA, contudo essa possibilidade também tem sido negada, forçando a todos a adesão a esse “paquiderme burocrático”, inclusive em estados onde não existe.
As compensações de RL não foram regulamentadas pelo SFB, e os estados se debatem, inclusive para regularizar a situação se suas próprias UCs. O proprietário, ainda que queira e necessite recuperar as suas APPs, deve primeiro submeter um projeto à aprovação dos órgãos, para depois promover as adequações necessárias.
E definitivamente, com essa teia de burocracias, perde a produção rural e sobretudo perde o meio ambiente. O que é mais importante, e a que se destina a legislação? A promover o perfeito desenvolvimento de processos documentais, longos e onerosos, ou a propiciar a recuperação efetiva e rápida dos ativos ecossistêmicos?
O sistema de georreferenciamento de propriedades passou por um processo parecido. A Lei 10.267 de 2001, obrigou ao posicionamento geodésico preciso de propriedades rurais, a ser cadastrado em sistema do INCRA. O primeiro modelo de análise iniciado por esse órgão, foi muito parecido com o que está acontecendo agora no CAR. Todos os processos passavam por análise prévia individualizada, com grande esforço e intermináveis divergências e dúvidas. Os números de áreas certificadas até 2.013 foram ridiculamente pequenos, como são números do CAR. Nesse ano, o sistema passou a ser declaratório, embora não se tenha afirmado categoricamente essa caraterística. O proprietário entra, lança as informações, de acordo com especificações técnicas, e preenchendo os requisitos básicos, passa a ter validade até que alguém, ou o próprio INCRA questione tais informações. Modelo declaratório, como é o Imposto de Renda. Depois dessa mudança, centenas de milhares de propriedades já estão certificadas, e o INCRA consegue perfeitamente atender a demanda, com poucos funcionários e no tempo adequado. A finalidade maior da norma foi estabelecida como prioridade, e a burocracia foi vencida pela realidade. E na área ambiental?
A Europa aprova normativa que obriga a comprovação da regularidade ambiental das propriedades, para a compra de seus produtos. Os bancos gradativamente passam a exigir a regularidade ambiental para financiarem a produção, na tentativa de se eximirem de eventual responsabilidade. O sistema, por um lado, cobra o cumprimento de procedimentos burocráticos, mas não se preocupa em gerenciar os verdadeiros ativos ambientais. O proprietário não pode se utilizar das prerrogativas legais estabelecidas na legislação para regularizar sua propriedade, porque a burocracia não deixa, e pela mesma razão, o meio ambiente continua descuidado.
O mercado mundial cobra a regularidade ambiental da produção agrícola. A sociedade cobra o equilíbrio ambiental de nossas propriedades, mas o sistema que deveria garantir essas condições, é exatamente o responsável pela sua estagnação? Como é que o produtor rural poderá tomar as medidas de regularização e garantir as condições ambientais adequadas de sua propriedade, se o próprio sistema o impede de praticar os atos a que está obrigado?
Se não se mudarem as interpretações e os rumos, rapidamente o sistema entrará em colapso, porque independentemente dos prazos legais, propriedades irregulares terão sérios problemas comerciais, e os órgãos responsáveis não ficarão impunes. A bem do interesse de todos é importante um reposicionamento.
O Decreto 7830/2012, em seu art. 6º, traz a caráter da declaratoriedade de forma expressa e indiscutível:
Art. 6º A inscrição no CAR, obrigatória para todas as propriedades e posses rurais, tem natureza declaratória e permanente, e conterá informações sobre o imóvel rural, conforme o disposto no art. 21.
Porque então não deixar que o proprietário promova as adequações necessárias, por sua própria responsabilidade, concentrando-se a fiscalização ambiental, nas condições ambientais da propriedade e não nos documentos relacionadas a ela? O que é mais importante para a sociedade? Uma propriedade perfeitamente adequada aos processos burocráticos ou perfeitamente adequada quanto às suas condições naturais?
Enquanto a omissão e a burocracia reinam, os conflitos se intensificam, os prejuízos se ampliam, os riscos jurídicos e esforços burocráticos se sobrepõe, e impedem a aplicabilidade de norma tão importante, e por tanto tempo discutida.
Os meios passaram a ser mais importantes que os fins, confrontando princípios elementares da gestão pública, como o da Eficiência Administrativa, e dos próprios fundamentos gerais do direito, como o Princípio da Formalismo Moderado. Trabalho, trabalho e trabalho; discussão, discussão e discussão; conflito, conflito e conflito, e resultados pífios para ambos os lados da discussão, e especialmente para a sociedade.
Ou se faz uma discussão madura, e efetivamente se aplica a legislação vigente, em todo o seu conteúdo, afastando a burocracia e priorizando a recuperação ambiental e a segurança jurídica da produção agrícola brasileira, ou a burocracia assassina o Código Florestal, e todos efeitos benéficos que ele poderia trazer à sociedade.
Vitor Hugo Ribeiro Burko
OAB-Pr. 13.880
Fonte: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/a-burocracia-mata-o-codigo-florestal/1848509171